sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Convicções e crendices

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Convicções e crendices

Educadora recomenda livro que mostra como o cérebro constrói nossas crenças e as transforma em verdades, e constata quão árdua é a tarefa de substituir ideias preconcebidas baseadas no conhecimento intuitivo pelas de caráter científico.
Por: Vera Rita da Costa
Publicado em 23/10/2014 | Atualizado em 23/10/2014
Convicções e crendices
A maioria fundamenta suas crenças em fatos filtrados pelo cérebro através das lentes coloridas de visões de mundo, paradigmas, hipóteses, tendências e preconceitos acumulados durante a vida. (foto: Maritè Toledo/ Flickr – CC BY-NC-ND 2.0)
Acabo de ler um interessante livro que todo professor de ciências deveria conhecer. Trata-se de Cérebro e crença, de Michael Shermer, historiador da ciência, editor e fundador da revista Skeptic e colunista da Scientific American.
O porquê dessa indicação? É simples e se encontra no próprio subtítulo da publicação, o qual informa que o objetivo da obra é justamente discutir ‘como nosso cérebro constrói nossas crenças e as transforma em verdades’.
O livro trata, indiretamente, sobre por que é tão difícil ensinar ciências e promover em nossos alunos a substituição das ideias preconcebidas
Em outras palavras, mais próximas do universo pedagógico, o livro trata, indiretamente, sobre por que é tão difícil ensinar ciências e promover em nossos alunos a substituição das ideias preconcebidas, baseadas em geral no conhecimento de senso comum, intuitivo e cotidiano, por aquelas de caráter científico. 
Pesando melhor, a leitura de Cérebro e crençanão interessaria apenas a professores de ciências. Mas a todos, principalmente nestes tempos bicudos em que, escudados pelo distanciamento físico que as redes sociais propiciam, promovem-se na internet discussões virtuais e virulentas sobre tudo. 
Com a leitura deste livro, seria possível refletir melhor e ponderar sobre a origem e a racionalidade das próprias ideias, antes de defendê-las a qualquer custo ou de combater com unhas e dentes aquelas que lhes são diferentes ou opostas. 
Seria possível perceber, por exemplo, que muitas das convicções que se tem são apenas racionalizações pessoais ou versões próprias a que se chegou por uma grande variedade de razões, nas quais se incluem fatores como a personalidade e o temperamento, a dinâmica familiar e o ambiente cultural com que se convive, além das experiências de vida acumuladas. 
Nossas convicções não necessariamente estão baseadas apenas em fatores relacionados à inteligência, à escolarização ou ao nível de informação que pretensamente julgamos ter
Nossas convicções, como diz o autor, não necessariamente estão baseadas apenas em fatores relacionados à inteligência, à escolarização ou ao nível de informação que pretensamente julgamos ter. Também não se baseiam em uma análise imparcial de prós e contras ou no uso da lógica e da razão para definir e escolher os fatos que as apoiam.
 A maioria de nós, a maior parte do tempo, como nos informa Shermer, fundamenta suas opiniões e crenças em fatos filtrados pelo cérebro através das “lentes coloridas de visões de mundo, paradigmas, teorias, hipóteses, conjeturas, pistas, tendências e preconceitos que se acumulam durante a vida”. 
Em ‘pedagogês’, diríamos que nosso conhecimento se baseia muito mais em formas de pensamento e aprendizagens implícitas do que em formas explícitas, racionais e lógicas, como é característico do pensamento científico. 
Por isso, como dizem Juan Ignácio Pozo e Miguel Crespo em seu livro A aprendizagem e o ensino de ciências – do conhecimento cotidiano ao conhecimento científico, a aprendizagem de ciências é tão difícil. Para se concretizar, ela exigiria uma mudança conceitual profunda, com a substituição do conhecimento de caráter cotidiano e implícito por aquele científico e reflexivo. Ou, pelo menos, como defendem certos autores, que o aprendiz reconheça a existência desses dois diferentes tipos de conhecimentos e aprenda a ativá-los em diferentes momentos e situações, de acordo com o contexto e a necessidade.

Truques cerebrais

Mas, voltando ao livro de Shermer, é interessante acompanhar as informações e a argumentação que ele usa para mostrar que somos ‘viciados’ em selecionar, entre todas as informações e fatos com os quais travamos contato, apenas aqueles que confirmem o que já acreditamos, ignorando ou afastando mediante racionalização aquilo que contradiz nossas crenças. Com isso, diz o autor, tornamo-nos mais e mais seguros e convictos de nossas posições. Tornamo-nos, também, mais e mais refratários a ideias diferentes e menos permeáveis às propostas de mudanças.
As ideias expressas em Cérebro e crença estão baseadas em pressupostos das neurociências e da biologia evolutiva e, dentro desta, em uma área que vem sendo chamada de ‘biologia da crença’. 
Nuvens
Quando identificamos rostos humanos em nuvens, estamos diante da tendência de nosso cérebro à ‘padronicidade’ – a tentativa cerebral de encontrar e reconhecer padrões onde na verdade não existem. (foto: Grażyna Suchecka/ Freeimages)
Um desses pressupostos é a ideia de ‘padronicidade’, segundo a qual nosso cérebro estaria “pré-programado pela evolução” para reconhecer padrões e agir com base neles. Outro é a ideia de ‘acionalização’ ou a tendência que nosso cérebro possui de também forjar justificativas que validem esses padrões e os transformem em crenças.  
A ‘padronicidade’, como explica Shermer, é uma característica adaptativa que conferiu à nossa espécie vantagens evolutivas, entre as quais a rapidez de pensamento e ação. 
Shermer: Somos tão ‘apegados’ a certos padrões e ‘viciados’ em reconhecê-los que nos arriscamos a encontrá-los rapidamente onde não existem, ou tentamos enquadrar fatos neles, de forma a torná-los significativos, mesmo quando não o são
Somos tão ‘apegados’ a certos padrões e ‘viciados’ em reconhecê-los, informa o autor, que nos arriscamos a encontrá-los rapidamente onde não existem, ou tentamos enquadrar fatos neles, de forma a torná-los significativos, mesmo quando não o são.  
Quando, por exemplo, identificamos rostos humanos em nuvens e paisagens, estamos frente a frente com a tendência de nosso cérebro à ‘padronicidade’ ou, ainda, diante de uma reação mental ‘automatizada’ de reconhecimento de padrões faciais e da imagem humana, onde, de fato, eles não existem.
A ‘acionalização’, por sua vez, está relacionada à tendência do cérebro humano de completar informações, inferir, deduzir e criar enredos apenas com base em fragmentos da realidade.  
Como explica Shermer, além de buscar sempre filtrar os dados, segundo os padrões pré-existentes e que lhe são mais facilmente reconhecíveis, o cérebro humano também tem a tendência de acomodar ou adaptar o que é novidade a esses padrões e modelos já conhecidos. 
O cérebro acaba, assim, ‘editando’ as informações que recebe, complementando-as, realçando aquelas que conferem com os padrões que já possui e reinterpretando-as a sua maneira própria. Dessa forma, acaba também por justificar e validar as ideias e modelos preexistentes, em um processo de retroalimentação e reforço de ideias e padrões. 
Tornamo-nos, assim, crentes em nossas próprias ideias e defensores intransigentes de nossas posições, mesmo que elas tenham sido forjadas de maneira ‘rápida e rasteira’ ou estejam baseadas em pressupostos distantes daqueles considerados racionais. 
Se você é professor de ciências ou frequentador das redes sociais na internet, lembre-se disso em sua próxima aula e em sua próxima discussão virtual. As ideias, quando se transformam em crenças arraigadas, se tornam fortalezas contra a aprendizagem.
Lembre-se também de que o processo vale para os dois lados. Nem mesmo a mente de um gênio – como diz Shermer – é capaz de anular os desvios cognitivos que favorecem o pensamento não científico.
Vera Rita da Costa
Ciência Hoje/ SP

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