terça-feira, 14 de outubro de 2014

Ensino sem memória

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Ensino sem memória

História da ciência ainda é timidamente incluída nos livros didáticos brasileiros e quase negligenciada nas aulas de conteúdo científico. Processo que levou à elaboração de teorias ou às descobertas e invenções não costuma ser mencionado.
Por: Vera Rita da Costa
Publicado em 10/10/2014 | Atualizado em 10/10/2014
Ensino sem memória
Cientistas como Darwin e Galileu ainda não receberam a devida atenção do nosso ensino de ciências. São lembrados apenas de passagem e muitas vezes até de modo anedótico. (imagens: Wikimedia Commons – CC BY-SA 3.0)
Galileu Galilei foi uma figura ímpar na história da ciência. Também o foram Charles Darwin, Isaac Newton, Madame Curie, Louis Pasteur e tantos outros. Avaliando bem, no entanto, nenhum deles mereceu ainda a devida atenção em nosso ensino de ciências. Todos são de certa forma negligenciados em nossas aulas. São lembrados apenas de passagem, apresentados em momentos esporádicos e por fatos episódicos, muitas vezes até de modo anedótico. Suas biografias são, em geral, alegorias, enfeites ou artifícios didáticos usados para ilustrar as aulas de ciências.
Se você é professor de ciências, talvez ache a afirmação acima um exagero. Afinal, de uns anos para cá, aumentou significativamente a presença da história da ciência nos livros e outros materiais didáticos, por causa da recomendação do Ministério de Educação (MEC). E, claro, as editoras e os autores se dispuseram prontamente a cumprir essa exigência, para que seus livros passassem pelos crivos avaliativos. 
Pouco se incluiu, nos livros didáticos, da própria história da ciência ou do processo que levou à elaboração de teorias ou às descobertas e invenções
Basta, no entanto, uma observação mais atenta para perceber que não foi feito nada além de colocar um pouco de história da ciência em um ‘boxe’ ou ‘destaque’, como se diz no meio editorial. Ainda usando o jargão da área, ‘enquadraram-se’ Galileu, Newton, Madame Curie e outros expoentes da ciência. Ou, em palavras mais sutis, incluíram-se nos livros didáticos, em paralelo ao conteúdo propriamente dito, pequenos resumos ou episódios relativos à história de vida dos cientistas e de suas descobertas. Pouco ou quase nada, entretanto, da própria história ou do processo que levou à elaboração de teorias ou às descobertas e invenções. 
Para quem gosta de história e de ciência – e mais ainda de história da ciência –, isso é lamentável e motivo de reflexão.

Visão mais humanizada

Ainda estamos por reconhecer e valorizar o papel real que a história da ciência, se bem apresentada, poderia ter no ensino de ciências. 
Experimento vela
A história da ciência deveria ser apresentada em nossos livros didáticos como uma reflexão contextualizada e crítica da produção do conhecimento. (imagem: Flickr – CC-BY 2.0)
Seria ótimo, por exemplo, ter como apoio um livro didático em que o foco não fosse exclusivamente, como em geral apresentam os materiais didáticos atuais, apenas os resultados aos quais se chegou ou as teorias e os conceitos já aceitos e estabelecidos. Um livro didático de ciências no qual houvesse mais espaço (muito mais espaço, não apenas alguns boxes) para a abordagem e a discussão do processo e da história envolvidos nas descobertas científicas, bem como dos interesses e motivações (de caráter pessoal, social, político ou econômico) envolvidos nelas. 
Talvez, com uma abordagem desse tipo, mais humanizada e que contemplasse não apenas os aspectos conceituais e específicos do conhecimento científico, mas também as questões filosóficas, históricas e sociais envolvidas na sua produção, nossos alunos pudessem se interessar mais pela ciência. Talvez pudessem até abrir mais seus livros didáticos para ler sobre ela, coisa difícil de se obter atualmente.

Contexto e crítica

Mas a realidade é que estamos distantes disso, principalmente porque, para que a história da ciência fosse apresentada em nossos materiais didáticos como é desejável – como uma reflexão contextualizada e crítica da produção do conhecimento –, seria necessário que os próprios materiais didáticos fossem planejados segundo outra lógica que não a convencional, ou aquela ‘ditada pelo mercado’ e à qual os ‘professores estão acostumados’. 
O foco da aprendizagem não deveria recair apenas na aquisição conceitual, mas também fortemente na compreensão do contexto em que descobertas, invenções e teorias foram produzidas
O foco da aprendizagem, nesse caso, não deveria recair apenas na aquisição conceitual, mas também fortemente na compreensão do contexto (histórico, social e político) em que descobertas, invenções e teorias foram produzidas. 
A história da ciência teria, assim, papel de destaque como conteúdo a ser ensinado e aprendido, fornecendo uma ótima moldura para a aprendizagem de temas específicos. Uma moldura que conferiria a eles, por exemplo, um contexto mais amplo de entendimento, maior possibilidade de atribuição de significado e uma via alternativa (narrativa, emocional e lúdica) para compreender melhor as ideias e adquirir as noções e conceitos científicos abstratos. Isso, é claro, sem contar a possibilidade de, com ela, tornar também mais plenamente possível alcançar uma compreensão adequada de como, de fato, é produzida a ciência.

Grande guinada

Mas, se estamos engatinhando quanto à inclusão da história da ciência em nossas aulas, o que dizer, então, de obter mudanças significativas nesse sentido quanto à produção de nossos livros didáticos? 
Seria necessária uma guinada e tanto, que daria enorme trabalho e requereria imensa coragem de autores e editores. Principalmente porque, para de fato apresentar a ciência como uma construção humana e coletiva, como uma via de mão dupla a influenciar e ser influenciada pela sociedade e cultura em que é produzida, o próprio livro didático (e a narrativa que ele apresenta) deveria ser muito diferente do atual. 
Então, melhor não arriscar, pensam editores e autores. Melhor mudar, mas fazê-lo conforme o modelo estabelecido, incluindo-se algumas pinceladas de história da ciência e satisfazendo as demandas oficiais, sem, contudo, mudar significativamente. Muda-se, mas como parece ser a regra em educação, bem devagarinho e sem desagradar ninguém. 
O que sobra de toda essa história? Que a história da ciência desejável, aquela que poderia fornecer ao aluno o contexto e ajudá-lo a atribuir significado ao conhecimento científico, ainda depende exclusivamente dos professores. Cabe praticamente apenas a eles (e a sua motivação, disposição e competência) a elaboração gradativa e conjunta com os alunos dessa reflexão e desse discurso fundamental que compõe a história da ciência. E, em relação às fontes disponíveis para auxiliá-lo nessa tarefa, infelizmente cabe também a eles buscá-las em paralelo ao universo dos recursos didáticos.
A história da ciência desejável, aquela que poderia fornecer ao aluno o contexto e ajudá-lo a atribuir significado ao conhecimento científico, ainda depende exclusivamente dos professores
Aliás, foi a leitura de um ótimo livro paradidático, Galileu na sala de aula (Editora Livraria da Física, 2013), escrito pelos físicos Francisco Caruso, Adílio Jorge e Vitor Oguri, que motivou essas reflexões. Destinado aos professores e alunos de ensino médio, esse livro é um exemplo do esforço que deve ser feito para que a história da ciência, ou uma concepção mais contextualizada da ciência, esteja presente em nossas aulas.
Se você é professor de física, não deve deixar de conhecê-lo. Mas, também deve fazê-lo se for professor de qualquer outra disciplina ou mesmo se não for professor.
Na realidade, o livro espelha um dos méritos da boa abordagem de conteúdos científicos pelo viés da história da ciência ou apoiado por ela: não reduz a aprendizagem apenas aos conceitos, teorias ou fatos, como se faz corriqueira e didaticamente. Também não se atém apenas a dados biográficos ou à cronologia dos feitos, como se faz historicamente. Faz o que devemos fazer em aula: provoca reflexões e nos faz transcender a moldura disciplinar. Nos torna, assim, mais capazes de enxergar o conhecimento humano em uma perspectiva mais rica e abrangente do que aquela que nos é apresentada em geral.
Vera Rita da Costa
Ciência Hoje/ SP

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