quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Evolução ainda na infância

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Evolução ainda na infância

Crianças pequenas são capazes de lidar bem com noções de adaptação e de seleção natural, bases para a compreensão adequada da teoria darwiniana sobre a origem das espécies.
Por: Vera Rita da Costa
Publicado em 14/08/2014 | Atualizado em 14/08/2014

Evolução ainda na infância
Em estudo recente na área de psicologia cognitiva, foi mostrado que crianças podem compreender corretamente conceitos biológicos importantes, como os envolvidos na teoria darwiniana da evolução. (foto: Anita Berghoef/ Freeimages)

Discutimos recentemente aqui o resultado de pesquisas que têm colocado em pauta a questão do que as crianças são capazes ou não de aprender. E, como tivemos oportunidade de também relatar naquela oportunidade, os resultados obtidos nesse quesito têm sido surpreendentes. 
Segundo variadas pesquisas, originárias principalmente do campo da psicologia cognitiva, até bebês de colo parecem estar habilitados a lidar com conceitos complexos, sobretudo conceitos físicos e matemáticos, relacionados principalmente às noções de tempo, espaço e número.
Mas, ampliando ainda mais essa discussão e reforçando sua importância, parece que as potencialidades das crianças, em termos de aprendizagens possíveis, não ficam restritas apenas aos conceitos físicos ou matemáticos. 
As potencialidades das crianças, em termos de aprendizagens possíveis, não ficam restritas apenas aos conceitos físicos ou matemáticos
Pelo menos, é o que indicam os resultados de uma pesquisa publicada em abril deste ano no periódico Psycological Science. No estudo, realizado por pesquisadores das universidades de Boston (EUA) e de Toronto (Canadá) e liderado pela psicóloga cognitivaDeborah Kelemen, demonstrou-se a possibilidade de crianças serem ensinadas (e compreenderem corretamente) também conceitos biológicos importantes, como aqueles que envolvem as noções de adaptação e de seleção natural, bases para a compreensão adequada da teoria darwiniana da evolução. 
Qualquer biólogo ou interessado pelas questões centrais e existenciais que a biologia nos coloca sabe a importância disso. 
Ao propor uma explicação alternativa à visão religiosa predominante sobre a origem das espécies, a teoria da evolução biológica tem sido alvo de inúmeras polêmicas. 
A evolução, como disse o eminente biólogo e divulgador da ciência norte-americano Stephen Jay Gould (1941-2002), é, de todos os conceitos fundamentais nas ciências da vida, o mais importante e também o mais mal compreendido. E, talvez, o principal motivo para isso, como se discute agora na pesquisa em questão, esteja justamente na aquisição tardia dos conceitos de adaptação e de seleção natural. 
Como explicam os pesquisadores em seu artigo, desde o início de seu desenvolvimento, as crianças exibem tendências conceituais que, embora úteis para o raciocínio cotidiano, podem se transformar mais adiante em empecilhos para a compreensão adequada da teoria da evolução biológica. 
Entre essas noções ou preconceitos aprendidos na infância, estão, por exemplo, as ideias de finalidade e intencionalidade, às quais as crianças recorrem com frequência em suas explicações e interpretações de fenômenos naturais. Se não forem reelaboradas ou superadas mais adiante, no entanto, essas ideias acabam por se cristalizar, criando explicações generalizadas e errôneas na vida adulta.

Derrubando preconceitos

Do ponto de vista do ensino de ciências, a discussão levantada por Kelemen e seus colaboradores é muito interessante. Além de fornecer uma explicação para a persistência de modelos intuitivos com os quais todo professor de ciências tem que lidar em sala de aula, aponta também uma possibilidade de solucionar essa dificuldade ou, pelo menos, minimizá-la. 
Talvez, como propõem os próprios autores do estudo, seja interessante antecipar a apresentação de certas ideias científicas, como as de adaptação e seleção natural, fazendo-o antes mesmo que ideias de caráter intuitivo se configurem em vieses cognitivos e conceituais e se tornem “entrincheiradas” no modo de pensar, dificultando ou impedindo a compreensão futura de outras ideias mais complexas, como a teoria da evolução.
Mas seria isso possível? As crianças realmente compreenderiam essas questões?
Gorilas
É importante antecipar certas noções científicas antes que ideias de caráter intuitivo se configurem em vieses cognitivos que dificultem a compreensão futura de conceitos mais complexos, como a teoria da evolução. (foto: Gölin Doorneweerd/ Freeimages)
Os autores exploraram a capacidade de compreensão e interpretação das ideias de adaptação e de seleção natural com crianças entre 5 e 8 anos e constataram que sim. 
Usaram para isso um livro infantil ilustrado, na qual se apresentava às crianças, por meio de um relato e imagens, a história de uma espécie fictícia de mamíferos, cuja sobrevivência começou a ser ameaçada pela falta de alimentos e que passou a ser submetida à pressão do ambiente. Contava-se para as crianças, com a ajuda de imagens, que, ao longo de gerações sucessivas, houve uma mudança gradativa da frequência populacional, com predomínio de apenas uma das variantes iniciais da espécie, a mais adaptada ao novo cenário. 
Por meio de testes, os pesquisadores constataram que as crianças entenderam a lógica de base populacional da seleção natural e também foram capazes de generalizar essa ideia, aplicando-a a uma nova espécie três meses após a primeira exposição às ideias evolutivas. 
Conceitos ou noções-chave que envolvem a variabilidade populacional, a adaptação e a seleção natural podem, de fato, se tornar aprendizagens significativas para as crianças, desde que abordados por meio de metodologias adequadas e condizentes com a idade
Os resultados alcançados demonstraram que os conceitos ou noções-chave que envolvem a variabilidade populacional, a adaptação e a seleção natural, tidos tradicionalmente como complexos ou inadequados para serem apresentados às crianças, podem, de fato, se tornar aprendizagens significativas para elas, desde que abordados por meio de metodologias adequadas e condizentes com a idade. 
Além disso, o estudo conclui que, se introduzidas ainda cedo na infância, muito provavelmente essas noções evitarão que ideias intuitivas, como as de finalidade e intencionalidade, se tornem tão ‘cristalizadas’ no pensamento a ponto de dificultarem futuramente a aprendizagem e a compreensão adequada de outros aspectos também importantes da teoria da evolução. 
Como os autores discutem em seu artigo, a adaptação por seleção natural é uma ideia chave para a compreensão da complexidade e da especialização funcional dos seres vivos. Apesar disso, décadas de estudos têm demonstrado que é também um dos conceitos mais amplamente mal compreendidos na ciência.
Sustentando esse processo, consideram os autores, encontram-se equívocos e vieses cognitivos, difundidos não apenas entre estudantes do ensino médio, mas também de graduação e até entre muitos dos professores de ciências e biologia. Se, todavia, fôssemos expostos às ideias corretas ainda na infância, isso poderia ser evitado ou, pelo menos, tornar-se menos frequente. Entenderíamos a teoria da evolução com base em seus pressupostos científicos elementares – a ideia de adaptação e de seleção natural – e não nos deixaríamos tão facilmente influenciar por ideias intuitivas ou dogmas religiosos.

Vera Rita da Costa
Ciência Hoje/ SP

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